20 de fevereiro de 2006

III. A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO COMTE



O núcleo da filosofia de Comte radica na ideia de que a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Com isso, distingue-se de outros filósofos de sua época como Saint-Simon e Fourier, preocupados também com a reforma das instituições, mas que prescreviam modos mais diretos para efetivá-la.

Enquanto esses pensadores pregavam a ação prática imediata, Comte achava que antes disso seria necessário fornecer aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo. Por essa razão, o sistema comteano estruturou-se em torno de três temas básicos. Em primeiro lugar, uma filosofia da história com o objetivo de mostrar as razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele filosofia positiva ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Em segundo lugar, uma fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva. Finalmente, uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de modificação da sociedade permitisse a reforma prática das instituições. A esse deve-se acrescentar a forma religiosa assumida pelo plano de renovação social, proposto por Comte nos seus últimos anos de vida.

A Filosofia da Historia – primeiro tema da filosofia de Comte – pode ser sintetizada na sua célebre lei dos três estados: todas as ciências e o espírito humano como um todo desenvolvem-se através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva.


No estado teológico, pensa Comte, o número de observações dos fenômenos reduz-se a poucos casos e, por isso, a imaginação desempenha papel de primeiro plano. Diante da diversidade da natureza, o homem só consegue explicá-­la mediante a crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais. O mundo torna-se compreensível somente através das idéias de deuses e espíritos.

Segundo Comte, a mentalidade teológica visa a um tipo de compreensão absoluta; o homem, nesse estágio de desenvolvimento acredita ter posse absoluta do conhecimento. Para além dos limites dos seres sobrenaturais, o homem não coloca qualquer problema, sentindo-se satisfeito na medida em que a possibilidade de recorrer à intervenção das divindades fornece um quadro para compreensão dos fenômenos que ocorrem ao seu redor.


Paralelamente às funções de explicação da natureza, a mentalidade teológica desempenharia também relevante papel de coesão social, fundamentando a vida social. Confiando em poderes imutáveis, fundados na autoridade, essa mentalidade teria como forma política correspondente a monarquia aliada ao militarismo.


O estado teológico, para Comte, apresenta-se dividido em três períodos sucessivos: o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo. No fetichismo, uma vida espiritual, semelhante à do homem, é atribuída aos seres naturais. O politeísmo esvazia os seres naturais de suas vidas anímicas - tal como concebidos no estágio anterior - e atribui a animação desses seres não a si mesmos, mas a outros seres, invisíveis e habitantes de um mundo superior. No monoteísmo, a distância entre os seres e seus princípios explicativos aumenta ainda mais; o homem, nesse estágio, reúne todas as divindades em uma só.


A fase teológica monoteísta representaria, no desenvolvimento do espírito humano, uma etapa de transição para o estado metafísico. Este, inicialmente, concebe “forças” para explicar ficar os diferentes grupos de fenômenos, em substituição às divindades da fase teológica. Fala-se então de uma “força física”, uma “força química”, uma “força vital”. Num segundo período, a mentalidade metafísica reuniria todas essas forças numa só, a chamada “natureza”, unidade que equivaleria ao deus único do monoteísmo.


O estado metafísico tem, segundo Comte, outros pontos de contato com o teológico. Ambos tendem à procura de soluções absolutas para os problemas do homem; a metafísica, tanto quanto a teologia, procura explicar a “natureza íntima” das coisas, sua origem e destino últimos, bem como a maneira pela qual são produzidas. A diferença reside no fato de a metafísica colocar o abstrato no lugar do concreto e a argumentação no lugar da imaginação.


Nessa perspectiva comteana, o estado metafísico se caracterizaria fundamentalmente pela dissolução do teológico. A argumentação, penetrando nos domínios das idéias teológicas, traria à luz suas contradições inerentes e substituiria a vontade divina por "idéias" ou "forças". Com isso, a metafísica destruiria a ideia teológica de subordinação da natureza e do homem ao sobrenatural. Na esfera política, o espírito metafísico corresponderia a uma substituição dos reis pelos juristas; supondo-se a sociedade como originária de um contrato, tende-se a basear o Estado na soberania do povo.


O estado positivo caracteriza-se, segundo Comte, pela subordinação da imaginação e da amamentação à observação. Cada proposição enunciada de maneira positiva deve corresponder a um fato, seja particular, seja universal. Isso não significa, porém, que Comte defenda um empirismo puro, ou seja, a redução de todo conhecimento à apreensão exclusiva de fatos isolados. A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, entendidos como relações constantes entre fenômenos observáveis.


Quando procura conhecer fenômenos psicológicos, o espírito positivo deve visar às relações imutáveis presentes neles - como quando trata de fenômenos físicos, como o movimento ou a massa; só assim conseguiria realmente explicá-los. Segundo Comte, a procura de leis imutáveis ocorreu pela primeira vez na história quando os antros gregos criaram a astronomia matemática. Na época moderna, o mesmo procedimento invento reaparece em Bacon (1561-1626), Galileu (1564-1642) e René Descartes (1596-1650), os fundadores da filosofia positiva, para Comte.

A filosofia positiva, ao contrário dos estados teológico e metafísico, considera impossível a redução dos fenômenos naturais a um só princípio (Deus, natureza ou outro experiência equivalente). Segundo Comte, a experiência nunca mostra mais do que uma limitada interconexão entre determinados fenômenos. Cada ciência ocupa-se apenas com certo grupo de fenômenos, irredutíveis uns aos outros. A unidade que o conhecimento pode alcançar seria, assim, inteiramente subjetiva, radicando no fato de empregar-se um mesmo método, seja qual for o campo em questão: uma idêntica metodologia produz convergência e homogeneidade de teorias.


Essa unidade do conhecimento não é apenas individual, mas também coletiva; isso faz da filosofia positiva o fundamento intelectual da fraternidade entre os homens, possibilitando a vida prática em comum. A união entre a teoria e a prática seria muito mais íntima no estado positivo do que nos anteriores, pois o conhecimento das relações constantes entre os fenômenos torna possível determinar seu futuro desenvolvimento. O conhecimento positivo caracteriza-se pela previsibilidade: “ver para prever” é o lema da ciência positiva.


A previsibilidade científica permite o desenvolvimento da técnica e, assim, o estado positivo corresponde à indústria, no sentido de exploração da natureza pelo homem. Em suma, o espírito positivo, segundo Comte, instaura as ciências como investigação do real, do certo e indubitável, do precisamente determinado e do útil. Nos domínios do social e do político, o estágio positivo do espírito humano marcaria a passagem do poder espiritual para as mãos dos sábios e cientistas e do poder material para o controle dos industriais.




A Educação Positivista


A sociedade industrial só pode se estruturar se cada indivíduo for educado para contribuir de forma útil em benefício do todo social. Cabe à educação a formação moral dos membros da sociedade para que cheguem a um consenso, com base no qual prevaleceria um estado de harmonia e ordem.

Na juventude, em um estudo que ficou conhecido com "A indústria...", Comte achava que todos deveriam trabalhar produtivamente pelo bem da sociedade. Já as pessoas que nada produzissem deveriam ser julgadas inimigas da sociedade. Por isso, Comte considerava urgente o estabelecimento de um novo poder espiritual, baseado em uma nova moral, que tivesse influência sobre o indivíduos e encaminhasse a sociedade para a "perfeição social possível", tornando cada indivíduo afeito à execução de uma função particular em benefício do todo, harmonizando-se, assim, as desigualdades sociais entre os seres humanos.

Esse novo poder espiritual, a exemplo do exercido pela Igreja Católica na Idade Média, deveria se dirigir a todas as classes sociais para torná-las solitárias na manutenção da ordem social. Porém, diferentemente do poder espiritual católico, baseado na teologia cristã, o novo poder espiritual deveria fundar uma moral inspirada na razão que tornasse possível a submissão pacífica e voluntária dos espíritos, em particular da classe operária. Para desempenhar essa tarefa de reorganização social é que deveria ser reestruturada a educação universal com base no conhecimento positivo fornecido pela ciência sociológica.

É, portanto, o poder espiritual que precisa tornar a ordem social aceita pacificamente pelos indivíduos. Uma "educação geral" deve estar orientada, então, para a construção da sociedade harmônica, desenvolvendo, segundo Comte, uma moralidade natural que ensine a praticar o altruísmo em benefício da harmonia social.

Para os "chefes da indústria", Comte propunha uma "educação especial" que os capacitasse a entender e desempenhar sua função em benefício não de si mesmos, mas da sociedade como um todo. A educação industrial seria fundamental para formar a mentalidade dos empreendedores da indústria com as concepções administrativas mais avançadas e favoráveis ao progresso de toda a sociedade, e não apenas das próprias empresas.

Em sua obra, Comte reserva um lugar importante para o que chama de instrução científica do povo, tendo trabalhado pessoalmente, em 1831, na realização de um curso  de "astronomia popular", destinado a ensinar astronomia aos operários. Sua expectativa era que estes aprendessem o exemplo de uma "ordem real" que comanda o universo e, então, aceitassem também a existência de uma ordem social natural e invariável, que funciona independentemente da intervenção humana e à qual todos os espíritos devem se resignar.


Por meio da educação, Comte pensava em superar o estado de agitação revolucionária existente na Europa, inculcando nos operários uma moral baseada na resignação à conjuntura de desigualdade social. Essa educação serviria tanto para disciplinar quanto para adaptar os trabalhadores às mudanças que os avanços científicos e técnicos impunham ao mundo do trabalho.


Em seu sistema teórico, Comte atribuiu ao poder espiritual exercido pelos sábios a tarefa de regenerar a sociedade por meio da educação e levá-la a uma situação de progresso espiritual e material. É relevante o fato de que, a partir de 1848, já no final da vida, Comte dedicasse esforços à criação de uma "religião da humanidade", que tornaria sagrada e inquestionável a ordem social positivista por ele concebida.

Comte passou a enfatizar também a relevância da educação do sentimento e do bom-senso como esteio da nova ordem social. Enquanto o progresso do espírito humano e da sociedade é concebido como obra da razão científica, a ordem deve ser obra do coração. Comte atribui, então, grande importância à mulher e ao proletariado, que no seu entendimento seriam dotados de uma inclinação natural para o amor e a submissão e, por isso, poderiam realizar o ideal de uma educação sentimental e estética.

A religião da humanidade criada por Comte deveria consolidar essa aliança entre o coração e a inteligência, utilizando-se da educação como veículo que levaria a formação moral às novas gerações. Em outros termos, educação e moral se fundem no sistema comtiano em um processo pedagógico organizado para tornar o indivíduo capaz de controlar o seu egoísmo por meio do progressivo desenvolvimento de suas funções afetivas e intelectuais, podendo, dessa maneira, integrar-se à ordem social positiva.

A influência do pensamento de Auguste Comte no Brasil começou ainda no século XIX. Um dos fundadores da República no país, Benjamim Constant foi também um dos introdutores do estudo sistemático da obra de Comte, que teve repercussão no pensamento e na prática de lideranças políticas, como no caso do presidente Getúlio Vargas, e na formulação de um modelo de organização estatal intervencionista e modernizador.

PILETTI, N; PRAXEDES, W. Sociologia da Educação. São Paulo: Ática, 2010.

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